O TDAH PELA ÓTICA DO PSICODRAMA
Beatriz Pelli
O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade - TDAH vem sendo a cada dia mais estudado e conhecido, e o seu diagnóstico é cada vez mais freqüente nos consultórios e escolas do mundo inteiro. O indivíduo portador de TDAH- seja ele criança, adolescente ou adulto- apresenta comprometimentos relacionais de variadas intensidades devido a sua personalidade agitada e/ou desatenta, fugindo dos padrões aceitos pela escola, família e sociedade. Quase sempre o portador de TDAH é apontado como uma pessoa “diferente”, tendendo a isolar-se e desenvolver problemas de saúde mental desde a ansiedade e a depressão, e em indivíduos com alguma pré disposição, problemas com o abuso de álcool e drogas, Transtorno Obsessivo-Compulsivo ou Transtorno Bipolar de Personalidade, entre outros.
O TDAH caracteriza-se por uma tríade de sintomas que se apresentam desde a primeira infância, sendo a maioria deles percebidos antes dos sete anos de vida. O primeiro deles é o déficit de atenção. É uma denominação que talvez não seja completamente adequada visto que, na verdade, o que observamos é uma alteração na capacidade de atenção, caracterizada por momentos onde o indivíduo encontra-se extremamente dispersivo quando deveria estar atento, mas também momentos onde a concentração é máxima (hiperfoco) em situações de interesse - como é o caso de jovens quando estão ligados em seus computadores - ou na execução de algum esporte de sua escolha.
O segundo sintoma do TDAH é a impulsividade. É o que leva um indivíduo a correr riscos desnecessários devido à incapacidade de pensar antes de agir. É um indivíduo propenso a grandes acidentes pois não prevê, muitas vezes, os riscos ou as conseqüências de seus atos.
O terceiro sintoma é a hiperatividade. Indivíduos hiperativos são aqueles que se agitam o tempo todo e conversam em demasia, interrompendo os outros, respondendo antes mesmo que a pergunta seja formulada. O pensamento é extremamente acelerado, levando-o a mudar de assunto várias vezes durante uma conversa, sem aprofundar ou concluir nenhum dos tópicos abordados. Mexem em vários objetos, vêem televisão, escutam música, lêem uma revista, tudo ao mesmo tempo. Têm o sono agitado ou dormem pouco, pois o cérebro não ‘desliga’.
As estatísticas demonstradas por vários autores concluem que o transtorno é o mais comum diagnosticado em sala de aula, atingindo uma média de 3 a 7% das crianças em idade escolar. Isto significa que, para cada turma de 30 alunos em uma sala de aula, devemos supor que encontraremos uma criança ou adolescente com estas características.
É fácil imaginar as dificuldades por que passam as crianças, adolescentes e adultos com TDAH. Também podemos imaginar as dificuldades de conviver com alguém que não descansa, não pára de falar, não pára de se movimentar, não espera sua vez, não prevê as conseqüências de seus atos. É , no mínimo, bastante cansativo para quem não tem estas características. O fato é que tanto o portador de TDAH quanto seus familiares, professores, colegas e amigos são afetados por este comportamento. Há a frustração do indivíduo portador de TDAH que não consegue adequar-se ao que os outros esperam de seu comportamento e há a frustração dos familiares, dos amigos, dos professores e de quem mais estiver por perto, por não conseguir conter este indivíduo.
Transpondo as palavras de Silva (2003), “o mecanismo exato que rege o comportamento do TDAH ainda não é totalmente compreendido”. Acredita-se que o fator genético esteja presente, visto que há uma maior incidência da síndrome entre parentes. Problemas durante a gravidez e parto, ingestão de certos alimentos, intoxicação por chumbo e outros fatores exógenos também são avaliados como possíveis causas, porém ainda sem comprovação. A investigação da estrutura familiar é muito importante, tendo em vista a grande incidência do transtorno em pacientes que convivem com uma família problemática e psiquicamente desestruturada, o que pode propiciar um ambiente favorável ao aparecimento dos sintomas de TDAH.
Sabemos também que há uma alteração funcional no cérebro do portador de TDAH que recebe, especialmente no lobo frontal, uma menor quantidade de aporte sanguíneo, diminuindo a quantidade de glicose, gerando menos energia e conseqüentemente tendo seu desempenho reduzido. Segundo a autora, nas pesquisas com anfetaminas verificou-se uma melhora considerável do comportamento desses pacientes. Como as anfetaminas atuam na regulação dos neurotransmissores, aumentando a quantidade ou a qualidade de atuação desses no cérebro, supõe-se que esses estejam em menor número, ou menos ativos no cérebro do portador de TDAH. Exames de ressonância mostram que a sub-atividade cerebral ocorre principalmente no lobo frontal direito dos portadores de TDAH.
E o que faz o lobo frontal direito? Para Silva (2003), o lobo frontal é o responsável pela manutenção dos impulsos sobre controle; planeja as ações futuras; regula o estado de vigília; filtra estímulos ‘irrelevantes’; aciona ações de luta e fuga; regula a sexualidade, o grau de disposição física e mental, além de outros aspectos do sistema fisiológico. É, poderíamos dizer, o ‘freio de mão’ no que diz respeito aos pensamentos, impulsos e velocidade das atividades físicas e mentais.
Se o lobo frontal está hipoativo, podemos considerar a possibilidade de acrescentar um não a cada uma destas afirmativas, e teremos possivelmente uma visão de um portador de TDAH: não faz a manutenção dos impulsos sobre controle; não planeja as ações futuras; não filtra estímulos; não aciona ações de luta e fuga; não regula a sexualidade, e não regula o grau de disposição física e mental.
Barkley (2002) afirma que o portador de TDAH apresenta um déficit central profundo na inibição do comportamento. A resposta comportamental é exacerbada, o que compromete a atenção - o desvio da atenção se deve à incapacidade de inibir respostas frente aos estímulos, pois manter a atenção é também manter a inibição.
A incapacidade de inibir os estímulos torna os portadores de TDAH menos aptos a seguir instruções, ou seja, eles são mais impulsivos. Esta impulsividade relaciona-se também diretamente com a capacidade verbal. Estes apresentam menos desenvoltura de linguagem e as habilidades verbais são menores. A informação que transmitem é menos organizada, menos madura e menos útil para a realização de atividades. Também são menos maduros em seu raciocínio moral, pois são menos reflexivos. Desta forma, não utilizam o discurso auto-dirigido como recurso para inibição da resposta.
Outro problema observado pela incapacidade de inibição do comportamento diz respeito à capacidade de realização de tarefas de um modo sistemático. Quanto mais limitado for o controle do impulso, mais variável será a resposta, e a produtividade do trabalho executado.
Barkley (2002) ainda observa que os portadores de TDAH apresentam uma inteligência de média a superior, o que nos faz concluir que estes indivíduos não apresentam falta de habilidades, mas sim falta de auto-controle.
Um parágrafo em especial do livro de Barkley chama a atenção. Vou transcrevê-lo aqui para uma reflexão:
“Temos a habilidade de esperar por períodos de tempo muito mais longos que outras espécies antes de responder. Este poder de esperar se origina de nossa grande habilidade em inibir a ansiedade imediata de responder e, porque a inibição entra em ação, esperar não é um ato passivo. Ser capaz de inibir nossa ansiedade imediata para responder e esperar por um tempo, diz Bronowsky (filósofo alemão, autor de ‘A AScenção do Homem’), permite-nos (1) criar senso de passado e, deste, um senso de futuro; (2) Falar a nós mesmos e usar esse discurso para controlar nosso próprio comportamento; (3) separar emoções de informações frente à nossa avaliação de eventos e (4) quebrar as informações ou mensagens que chegam em partes e, então, recombinar essas partes em novas mensagens de saída ou respostas (análise e síntese). Entre a terceira e quarta habilidades, eu adicionaria mais uma: a capacidade de interiorizar as emoções e usá-las para criar motivação interna para dirigir nosso comportamento em busca de objetivos. Se o TDAH é um problema relacionado à capacidade de uma pessoa em inibir suas respostas, então podemos presumir que alguém com TDAH apresente problemas nestas cinco habilidades.”
Pensemos agora um pouco pela ótica do psicodrama:
Segundo José Fonseca (Psicodrama da Loucura,1980) a criança passa, durante seu desenvolvimento, por diferentes estágios. Nesse processo, “ela vai internalizando a forma, as características e peculiaridades de suas relações primárias, de seus primeiros vínculos. A maneira pela qual se está no mundo nas fases iniciais da vida e as condições em que são estabelecidas as ligações com a mãe, o pai, com o pai e mãe, com os irmãos, com a família, com os colegas e com os amigos, irão, por assim dizer, inscrever-se em sua personalidade.”
Em seu livro Psicoterapia da Relação (2000), José Fonseca define a matriz de identidade como formadora da identidade, sendo o berço da consciência de quem somos e de quanto valemos. É na matriz de identidade que se forma a personalidade, através do relacionamento por meio de papéis e fazendo vínculos. A matriz de identidade é determinante na vida adulta do indivíduo. Através das relações iniciadas na matriz de identidade, poderemos encontrar adultos seguros ou inseguros relacionalmente.
O autor observa que as relações da vida adulta incluem as relações desde a matriz de identidade, passando pela internalização dos modelos relacionais e se exteriorizando novamente na vida adulta. No desenvolvimento da personalidade a criança passa pelo processo de relações-separações, constituindo o aprendizado básico da vida relacional e abrindo a possibilidade para um leque de defesas contra a dor da separação e perda.
O bebê busca a relação. Inicialmente busca a relação indiscriminada, servindo-se de qualquer pessoa que satisfaça suas necessidades mais primárias. Numa segunda fase, a criança já demonstra preferências, apaixonando-se por determinadas pessoas de seu grupo e afastando-se de outras. Quando a criança é afastada das pessoas pelas quais se apega, várias reações se manifestam, formando um ciclo de aprendizado para a vida relacional:
1- Ao perceber a separação, a criança demonstra ansiedade e medo;
2- Ao sentir-se contrariada pelo afastamento, a criança demonstra raiva, com comportamento agressivo;
3- A criança, ao sentir-se abandonada, demonstra tristeza; e
4- A criança volta ao estado normal, com a internalização da experiência.
Neste processo dinâmico vão-se formando os traços principais e secundários da personalidade. A influência das relações-separações na matriz de identidade determinam o tipo de personalidade do indivíduo adulto. Assim, personalidades histéricas, fóbicas, obsessivas, etc, têm o início da sua formação ligados às relações vividas e internalizadas pelo indivíduo desde a infância.
Fonseca (1980) compara a matriz de identidade às “caixas negras” dos aviões. As caixas negras contêm as gravações das comunicações dos pilotos durante todo o trajeto do vôo, funcionando como uma memória, no caso da necessidade de reconstrução deste vôo. Assim também a matriz de identidade seria a marca ou registro de todas vivências, positivas ou negativas do ser humano. Tanto as vivências anteriores aos 2-3 anos de idade, não alcançadas pela memória evocativa, como também os fatos biológicos e sociais, como sensações dolorosas ou prazerosas, ou perdas como a morte de algum ente de sua relação social, seria registrado pela criança. Moreno ressalta que o fato em si tem menos importância do que a vivência deste fato.
Segundo o autor, as marcas continuam durante toda a vida, até a morte – fim do vôo. São registros conscientes e inconscientes, dos vínculos e do ambiente. Determinadas fases ficam mais marcadas que outras, tanto por inscrições positivas como negativas. A parte mais sensível desta cunhagem dá-se nos primeiros anos de vida, mas experiências da vida adulta poderiam ser liberalizadoras das marcas inscritas no passado e remarcadoras de novas inscrições no futuro.
Voltemos a Barkley: “Temos a habilidade de esperar por períodos de tempo muito mais longos que outras espécies antes de responder. Este poder de esperar se origina de nossa grande habilidade em inibir a ansiedade imediata de responder e, porque a inibição entra em ação, esperar não é um ato passivo.”
Segundo as teorias psicodramáticas diríamos que a ansiedade origina-se pela insatisfação do bebê que não recebe continência em suas primeiras fases da matriz. Se não é saciado e processo de separação de seu cuidador é um processo doloroso e traumático, o ciclo definido por Fonseca, descrito acima, ficaria assim:
1- Ao perceber a separação, a criança demonstra ansiedade e medo;
2- Ao sentir-se contrariada pelo afastamento, a criança demonstra raiva, com comportamento agressivo;
3- A criança, ao sentir-se abandonada, demonstra tristeza; e
4- A criança não volta ao estado normal, e faz a internalização de experiências negativas, carregadas de ansiedade, medo, tristeza, etc.Se esse processo de insatisfação ocorre de maneira repetitiva e sistemática, essa criança continua em um processo de ansiedade, a sua espera prevê situações insatisfatórias. Não há como saciar-se internamente, pois a sensação é de que o que virá não será bom. Neste caso, a ansiedade instala-se como uma marca determinante da identidade dessa pessoa, que terá essa característica por toda vida. A espera significa insatisfação, então a resposta aos estímulos será cada vez mais imediata e impulsiva.
Vejamos agora o que diz Moreno a respeito da impulsividade:
“Usa-se com freqüência o termo “espontâneo” para descrever indivíduos cujo controle sobre suas ações está diminuído. Mas isso é um emprego do termo ‘espontâneo’ que não está de acordo com a etimologia da palavra derivada do latim sponte, ‘de livre vontade’. Como demonstramos antes a relação existente entre os estados espontâneos e as funções criadoras, é claro que o aquecimento de um ato espontâneo leva a – e tem por finalidade – padrões de comportamento mais ou menos altamente organizados. O comportamento desordenado e os emocionalismos resultantes da ação impulsiva estão longe de constituir desideratos do trabalho de espontaneidade. Pertencem, ao contrário, ao domínio da patologia da espontaneidade”.
Podemos agora considerar a possibilidade de o TDAH ser resultado de uma patologia da espontaneidade, ao que comumente chamamos de espontaneísmo - termo não citado por Moreno, mas de uso comum entre os psicodramatistas, ao se referirem a indivíduos que apresentam respostas inadequadas frente a velhas ou novas situações. Vejamos agora o que significa Espontaneidade, segundo Moreno:
Define-se como espontaneidade “a resposta do indivíduo a uma nova situação, ou a nova resposta a uma antiga situação. É a capacidade de agir de modo adequado diante de situações novas, criando uma resposta inédita ou renovadora ou, ainda, transformadora de situações pré-estabelecidas”.
“O fator e – esponaneidade - é influenciado, mas não determinado pela hereditariedade e as forças sociais, sendo uma área de relativa liberdade e independência destes determinantes, formando novos atos combinatórios e permutações, escolhas e decisões, e da qual surge a inventiva e a criatividade humana”.
Segundo Moreno, o fator e não pode ser conservado ou armazenado como, por exemplo, na teoria psicanalítica da libido. Para Freud, se a energia sexual não encontra satisfação em seu objetivo direto, deve deslocar sua energia não aplicada para uma outra parte e encontrar novas saídas como na agressão, substituição, projeção, regressão ou sublimação. Então, Freud não concebia que essa energia se dissipasse.
Para Moreno o indivíduo não está dotado de um reservatório de espontaneidade. A espontaneidade é ou não disponível em graus variados de acesso imediato. Assim o indivíduo quando se vê diante de uma nova situação não tem alternativa senão utilizar o fator e como guia apontando-lhe que emoções, pensamentos e ações são mais apropriados. Por vezes tem que recorrer a mais espontaneidade e às vezes menos, de acordo com a exigência da situação ou tarefa. Deve cuidar de não produzir menos que o necessário, pois se isso acontecesse precisaria de um reservatório de onde extraí-la.
Também deve tomar o cuidado de não produzir mais do que o necessário, pois nessa situação, teria que armazená-la e estabelecer um reservatório, conservando-o para tarefas futuras como se fosse energia, assim completando um círculo vicioso que redunda na deterioração da espontaneidade e no desenvolvimento de conservas culturais.
A espontaneidade só funciona no momento do seu surgimento, assim como, falando metaforicamente, se acende uma luz numa sala e todas suas partes se tornam claras. Quando se apaga a luz, a estrutura básica da sala continua sendo a mesma e, no entanto, desapareceu uma qualidade fundamental.
Na teoria da espontaneidade, a energia, enquanto sistema organizado de forças psíquicas não foi totalmente abandonado. O acumulo ou reserva do fator e resultaria na conserva cultural. Aí a espontaneidade aparece como um final de um processo e é avaliada em sua relatividade, não como uma forma última, mas como um produto intermédio que, de tempos em tempos, é reorganizado, reformado ou é inteiramente decomposto por novos fatores de espontaneidade que atuam sobre ele.
É na interação entre espontaneidade e criatividade, por um lado, e a conserva cultural, por outro, que a existência do fator e pode ser, de algum modo, harmonizada com a idéia de um universo sujeito a leis, como, por exemplo, a lei da conservação de energia.
Um tipo de universo aberto em que é possível certo grau de novidade é uma condição favorável para que o fator e surja e se desenvolva.
A gama de experiências que atingem a criança é quantitativamente maior do que para o adulto. Para a criança, criar torna-se uma coisa rotineira. Criar e ser parecem para ela a mesma coisa. Assim a freqüência do fator e está distribuída de um modo pouco uniforme durante toda a nossa vida. O bebê humano, durante os primeiros anos de vida, defronta-se com novas experiências e novas situações que o desafiam continuamente a responder, num grau sem paralelo em outros períodos de vida.
Com base no estudo experimental, podemos considerar quatro expressões características da espontaneidade como formas relativamente independentes de um fator e geral:
A espontaneidade que entra na ativação de conservas culturais e estereótipos sociais;
A espontaneidade que entra na criação de novos organismos, novas formas de arte e novas estruturas ou padrões ambientais;
A espontaneidade que entra na forma de livres expressões da personalidade;
A espontaneidade que entra na formação de respostas adequadas a novas situações.
Qualidade dramática
É a qualidade dramática da resposta que confere novidade e vivacidade a sentimentos, ações e expressões verbais que nada mais são do que repetições que o indivíduo experimentou milhares de vezes na vida, isto é, que nada contém de novo, original ou criador.Se pudéssemos esvaziar sua mente e examinar-lhe o conteúdo, descobriríamos estereótipos ou repetições. Opera em certos períodos de vida com mais freqüência do que em outros como na infância e adolescência. Essa forma de e reveste-se, segundo parece, de grande importância prática, ao energizar e unificar o eu, na medida em que o indivíduo é capaz de vincular ao eu unidades conservadas e fechadas de experiência.
Criatividade
O extremo oposto de um homem que é um gênio da dramatização do eu, mas totalmente improdutivo, é o homem totalmente produtivo e criador, embora talvez seja inexpressivo e insignificante como indivíduo. Se esvaziássemos a sua mente, encontrá-la-íamos num permanente status nascendi, repleta de sementes criadoras, sempre disposta a dissolver as conservas existentes e criando novas formas, novas idéias e novas invenções. Está perpetuamente empenhado em produzir novas experiências em seu próprio íntimo, a fim de que elas possam transformar o mundo à sua volta e, assim, enchê-lo de novas situações. Essas por sua vez desafiam-no a mais experiências novas, que voltam a esforçar-se por modelar um mundo ao redor. Assim esse indivíduo está comprometido num ciclo incessante de criatividade.
Essa função e não se satisfaz em expressar meramente o eu; está ávida por criar o eu. Os gênios sempre contêm uma parcela dessa capacidade. Três versões foram diferenciadas:
A espontaneidade que entra no nascimento e criação de uma nova criança;
A espontaneidade que entra na criação de novas obras de arte, de novas invenções tecnológicas e sociais;A espontaneidade que entra na criação de novos ambientes sociais.
Um indivíduo altamente espontâneo tirará o maior proveito dos recursos que tem à sua disposição, como inteligência, memória, aptidões e pode suplantar em muito um indivíduo que é superior nesses recursos, mas dele tira o mínimo proveito. A espontaneidade pode entrar num indivíduo criativamente dotado e suscitar uma resposta.
Originalidade
A Terceira forma de espontaneidade é a de originalidade. É aquele livre fluxo de expressão que, sob análise, não revela qualquer contribuição, suficientemente significativa para que se lhe chame criatividade, mas que, ao mesmo tempo, em sua forma de produção é uma expressão ou variação impar da conserva cultural, tomada como modelo. Isso é freqüentemente ilustrado pelos desenhos espontâneos infantis e a poesia dos adolescentes, que acrescentam algo a forma original sem alterar a sua essência.
Adequação da resposta
Um homem pode ser criativo, original ou dramático, mas nem sempre tem de um modo espontâneo, uma resposta adequada a novas situações. Ele pode apresentar:
Nenhuma resposta numa situação:Nenhum fator e está em evidência;Pode ter abandonado uma antiga resposta sem ter uma nova;Pode ter mantido uma antiga resposta ou a alterado de forma tão insignificante que parece perdido ante uma nova situação;Não presta atenção a uma nova situação ou é incapaz de fazê-lo por não reconhecê-la; eA nova situação poderia ameaçar a sua existência ou destruir alguns dos valores que ele valoriza.
Uma nova resposta a uma velha situação:Uma nova resposta para a qual não havia precedente.
Uma nova resposta a uma nova situação:Requer senso de oportunidade, imaginação para a escolha adequada, originalidade de impulso próprio em emergências.Aptidão plástica de adaptação, mobilidade e flexibilidade do eu indispensável a um organismo em rápido crescimento num meio em rápida mudança.
Se o indivíduo apenas dispusesse de respostas estereotipadas, observa Moreno, por muito dramatizadas que fossem, cairia no domínio da primeira forma. Se estivesse cheio de idéias e tentasse criar novas situações, caberia ao domínio da segunda forma. Em ambos os casos, não se disporia prontamente da requerida resposta adequada à situação com que o indivíduo se defronta. Num caso, pode haver demasiado pouco; no outro caso, pode haver em excesso”. Em outra passagem, leremos o seguinte: “... quanto maior for o número de novas situações, maior é a probabilidade de que o indivíduo produza uma quantidade comparativamente maior de novas respostas, mesmo pensando que lhe seria impossível tomar consciência de todas as situações que surgem a sua volta e responder de uma forma adequada a todas as novas situações”.
Então, o que fazer frente ao indivíduo que apresenta pouca espontaneidade e muito “espontaneísmo”, como é o caso do portador de TDAH? Moreno nos fala sobre o treinamento da espontaneidade, necessário para que as pessoas aprendam rapidamente a corporificar suas próprias inspirações e rapidamente reagir às dos outros, de tal forma que disponham de muitas alternativas de resposta, ficando assim capacitados a uma escolha da resposta mais própria, dentre todas, à situação que defronta.
As técnicas psicodramáticas nos conduzem a um treino da espontaneidade, pois através do trabalho com cenas, criamos situações hipotéticas, recriamos situações passadas e dramatizamos no “aqui e agora”, permitindo ao indivíduo meios para que produza uma resposta adequada e satisfatória.
Nas palavras de Moreno: (...) Quando o instrutor de Espontaneidade reconhece que o aluno tem carência de certos estados, por exemplo, coragem, alegria, etc., coloca-o numa situação específica em que estes estados são inadequados ou aconselháveis. O aluno ‘representa’ esta situação, teatraliza de improviso o estado(...). Por outras palavras, se é coragem que lhe falta, ele ‘representa’ coragem até que aprenda a ser corajoso.
O que Moreno descreve é o role-plaiyng, técnica desenvolvida para personificar outras formas de existência, através do jogo de papéis.
Outras técnicas podem ser aplicadas ao indivíduo portador de TDAH. Vejamos:
Como vimos anteriormente, ‘os portadores de TDAH têm menos desenvoltura de linguagem e as habilidades verbais são menores. A informação que transmitem é menos organizada, menos madura e menos útil para a realização de atividades. Também são menos maduros em seu raciocínio moral, pois são menos reflexivos. Desta forma, não utilizam o discurso auto dirigido como recurso para inibição da resposta. Pode-se aqui aplicar a técnica do Duplo, fornecendo um inconsciente auxiliar ao paciente, ajudando-o a clarificar suas idéias e ordenar melhor os seus pensamentos.’
A auto-percepção do paciente portador de TDAH é diminuída pois não utilizam o discurso auto dirigido. Pode-se neste caso utilizar-se da técnica do Espelho, para que este se veja, através da representação de seu papel pelo terapeuta ou ego-auxiliar. Isto fará com que o paciente se veja por outra perspectiva e perceba como os outros o vêem.
Assim como estas, todas as técnicas psicodramáticas proporcionam ao indivíduo uma melhor percepção de si mesmo e um aumento de espontaneidade.
Note-se que o intuito da intervenção no paciente portador de TDAH através das técnicas de psicodrama não é a de “curar” a tríade de sintomas básicos do transtorno, mas sim dotá-lo de meios que facilitem sua relação com estes sintomas, minimizando-os na medida em que este indivíduo é dotado de suficiente espontaneidade, para capacitá-lo a adequar-se melhor às situações que se lhe apresentem.
As técnicas psicodramáticas também podem ser de grande valia para o tratamento das famílias do portador do TDAH, como por exemplo a utilização da inversão de papéis. Esta técnica inicialmente pode não ser eficaz para o portador, mas ajuda os familiares a verem suas inter-relações pela perspectiva do portador do TDAH, minimizando assim os conflitos freqüentemente presentes nesta família. Pode-se também estender o trabalho psicodramático à escola, amigos, relações de trabalho ou casais.Imaginemos as dimensões dos estragos causados às relações deste indivíduo, além de seu auto-conceito negativo e sua auto-estima baixa, considerando que este tem consciência de seus erros e a noção tardia do que deveria ter feito nas situações em que se esperava dele um comportamento mais “ajustado”. É um sujeito que age por impulso e analisa depois do ato.
Como conseqüência, ocorre uma visão negativa da maioria das pessoas em relação ao portador de TDAH. Os fatos revelam aos olhos leigos um sujeito que demonstra em situações diversas falta de educação, falta de limites, falta de atenção com familiares, amigos, colegas, desorganização em suas atividades diárias. Tudo indica que deva tratar-se de uma má-educação dos pais...
O portador do TDAH, desinformado de seu quadro e criticado em vários contextos, pode definir-se assim: “ Como sou estúpido, não consigo prestar atenção a
nada, não consigo parar de falar, não consigo ficar quieto,não consigo me controlar. Sou mesmo um burro, as pessoas têm razão de não gostarem de mim, sinto-me um incapaz...”.Então, qual a solução para este caos que se instala na vida do portador do TDAH? Contamos com a medicação, que auxilia em até 80% dos casos, regulando o funcionamento cerebral. Temos as terapias (psicoterapia, auxílio psicopedagógico, fonoaudiológico, etc). Mas, em toda bibliografia a que se tem acesso, ainda não tomei conhecimento de uma pesquisa consistente em que se priorize a melhora das inter-relações deste paciente. Seu comportamento pode ser melhorado, na medida em que a terapia medicamentosa e o apoio psicológico são utilizados. Mas sua auto-estima continua ligada ao conceito de terceiros. Se estes não modificarem sua forma de relacionar-se com o paciente, perderemos muito da eficácia de qualquer tratamento, ou pelo menos dificultaremos o andamento deste.
Acredito que o grande diferencial no tratamento do paciente TDAH seja o envolvimento de pais, professores e amigos, incentivando e trabalhando ativamente para que este paciente seja melhor compreendido. Moreno (1998) só compreendia o ser humano de acordo com suas relações sociais, o que significa que não se pode tratar de um indivíduo se não tratarmos suas relações com os outros. Ao nos deixarmos envolver, admitindo nossa responsabilidade na manutenção do tratamento e na melhora das relações inter-pessoais de nossos filhos, alunos e pacientes, começamos a compreender o seu universo, mudamos de atitude em relação às nossas vivências, sendo profundamente beneficiados por esta nova visão, e acabamos por atingir o outro, tornando a relação mais satisfatória para ambos. As tensões começam a ser dissipadas, o ambiente fica mais leve, há mais espaço para a compreensão. Assim, um filho portador de TDAH deixa de ser um ‘problema’, e suas qualidades e individualidade começam a ser melhor exploradas. Um aluno portador de TDAH deixa de ser considerado ‘incompetente’ e com um pouco de ajuda pode tornar-se um aluno brilhante. A adequação, a capacidade de novas respostas a velhos problemas começa a surgir com mais naturalidade, dando lugar à espontaneidade onde antes havia irritabilidade.
Adultos portadores de TDAH, após suas experiências e arranhões à auto-estima que fatalmente receberão durante sua infância e juventude, apoiados por seu átomo sócio-familiar terão a oportunidade de assumir as responsabilidades de suas vidas e, em muitos casos, tornarem-se vitoriosos. Eles têm a seu favor o impulso criativo, qualidade imprescindível a grandes empreendedores. Agora, conscientes e mais seguros, conseguem conter um pouco do ‘exagero’ de tudo em suas vidas, e assim podem tornar-se produtivos, integrados à sociedade e em alguns casos até admirados por ela.
Como já vimos, o TDAH é um transtorno que provoca reações em todas as relações do paciente, seja na família, na escola ou em seu meio social. Tratar de um portador de TDAH deve então envolver, além das terapias convencionais, um programa
de orientação e apoio para pais, professores e amigos que convivem com este paciente. Infelizmente, não há no serviço público nenhum projeto com esta finalidade.
Desenvolvo, em parceria com minha irmã Lílian Pelli, psicóloga e psicodramatista, um trabalho onde procuramos orientar professores no encaminhamento de alunos para diagnóstico quando há suspeita de TDAH, além de conscientizá-los sobre como lidar com estes alunos em sala de aula. Paralelamente, propomos um trabalho com os pais, para melhorar as relações de família. Trabalhamos com a teoria socionômica, utilizando técnicas psicodramáticas, jogos e dinâmicas de grupo. Assim procuramos promover a capacitação de seres humanos cada vez mais espontâneos, mais integrados socialmente e conseqüentemente mais saudáveis.
* Beatriz Pelli é cirurgiã-dentista e psicodramatista em formação, com pesquisa nas relações familiares e sociais dos portadores de TDAH.e-mail: biapelli@hotmail.com
BIBLIOGRAFIA
SILVA, Ana Beatriz B. - Mentes Inquietas: Entendendo Melhor o Mundo das Pessoas Distraídas, Impulsivas e Hiperativas – São Paulo: Editora Gente, 2003 - 9ª Edição.
BARKLEY, Russell A. – Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH): guia completo e autorizado para os pais, professores e profissionais de saúde; Trad. Luís Sérgio Roizman – Porto Alegre: Ed. Artmed, 2002
PHELAN, Thomas W. – TDA/TDAH – Trantorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade – São Paulo: M Books do Brasil Editora Ltda., 2005
MORENO, J.L. – Psicodrama – São Paulo: Ed Cultix, 1998
FONSECA, José – Psicoterapia da Relação – Elementos de psicodrama contemporâneo – Ed. Agora, 2000.
FONSECA,José - Psicodrama da Loucura, Ed Ágora, 1980
CUKIER, Rosa – Palavras de Jacob Levy Moreno – Ed. Agora, 2002
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